domingo, 18 de novembro de 2012

O último dia






Já havia algum tempo que eu não sentia mais as coisas como antes. Desde que a vida me levou quem eu mais amava, precisei encarar os problemas de frente, com a certeza de que, se não o fizesse, o mundo me engoliria sem dó nem piedade e me transformaria em mais uma vítima da realidade, sem eira nem beira, e sem qualquer chance de esperança em um milagre ou em um resgate. Foram poucos anos de convivência, mas, ainda assim, foi o mais belo exemplo que alguém pôde ter. Não tenho muitas lembranças dela. Era muito nova, eu creio. Uma de minhas poucas recordações é o dia em que tudo aconteceu.

Era um sábado ensolarado, e ela havia chegado ansiosa do trabalho. Íamos ao clube. A gente não tinha dinheiro e a vida não era fácil, mas com o pouco que tínhamos nunca passamos necessidade. Ela jamais teria deixado. Trabalharia dia e noite se fosse preciso. Lembro que ela mandou que eu vestisse o maiô azul de listras laterais verdes que tia Beta havia me dado de natal. O mesmo que eu vestia na única foto que tenho daquela época. Tiramos antes de sair, com a velha máquina de filme. Ela estava linda, radiante. Finalmente tinha conseguido juntar dinheiro para pagar nossas entradas no clube da zona sul. Era um lugar de elite, pessoas como nós não o frequentavam. Tinha três piscinas enormes e um tobogã que quase levava a gente na porta do céu, como ela costumava dizer. Ela adorava praias, piscinas e tudo o mais que a fizesse se sentir livre, em suas próprias palavras: flutuando alegre, como se estivesse nos braços de Deus. E foi exatamente naquele dia que minha mãe me deixou para se aconchegar nos braços d'Ele.

Fomos olhadas com certa desconfiança pelo porteiro, mas como pagamos devidamente as entradas, ele nos deixou entrar. O semblante dela era de alguém que estava realizando o maior sonho da sua vida. Acho que não me lembro de tê-la visto tão feliz assim em outra ocasião.

Brincávamos juntas na piscina. Ela parecia mais criança que eu. Notei que as pessoas nos olhavam receosas e perguntei a ela o porquê. Nunca vou esquecer aquela resposta, que logo fez meu inocente coração voltar à distração, mesmo sem entender muito bem o que ela quis dizer. ”Não liga, minha filha, nosso dinheiro vale tanto quanto o de qualquer outro aqui.” Na última vez que eu pude olhar em seus olhos, vi a expressão assustada, por causa da gritaria que começou. Três homens, bem vestidos, haviam entrado ordenando que todos se deitassem no chão. Na hora que ela percebeu o que estava acontecendo, segurou forte o meu braço e fomos apressadamente para a saída. Eles iam em direção ao escritório que ficava nos fundo do clube, à esquerda. Quase cruzávamos o portão, quando um deles nos viu e gritou para o outro que tinha gente fugindo. Esse outro mandou ele atirar, mas ele hesitou. O outro gritou de novo, mais agressivamente. Minha mãe virou-se num ato de reflexo, e o tiro acertou-a em cheio no peito. Ali, com minha mãe sangrando no chão, escorreu também a metade de mim que nunca mais voltaria a existir. Foi o pior momento da minha, até então, breve vida, e continuará sendo, ainda que eu viva mil anos.

Cresci e me tornei adulta, sem que ela pudesse ver e me abraçar a cada lágrima que eu chorei ou a cada sorriso que dei. Sei que era isso que ela faria se estivesse aqui. Minha mãe, sempre tão doce. Honesta, batalhadora.  Tiraram dos meus braços, ainda tão jovem, a única pessoa que afastava todos os meus medos apenas com sua presença.

Dezoito anos depois, hoje ela ainda faz falta aqui, mas a dor que no início dilacerava cada pedaço de mim, deu lugar à saudade de tê-la comigo e de todos os momentos que não pudemos viver juntas.

Mesmo tendo passado tanto tempo, até este exato segundo não consigo entender como uma pessoa tem a coragem e a covardia de privar outra pessoa de viver ao lado de alguém que tanto ama. É um corpo que se vai e vários corações que ficam, lutando para manter o ritmo das suas batidas. Éramos pobres e morávamos num bairro de classe média baixa, mas foi ali, num clube de classe alta, que nossas vidas foram, impiedosamente, marcadas para sempre.

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