Já
havia algum tempo que eu não sentia mais as coisas como antes. Desde que a vida
me levou quem eu mais amava, precisei encarar os problemas de frente, com a
certeza de que, se não o fizesse, o mundo me engoliria sem dó nem piedade e me
transformaria em mais uma vítima da realidade, sem eira nem beira, e sem
qualquer chance de esperança em um milagre ou em um resgate. Foram poucos anos
de convivência, mas, ainda assim, foi o mais belo exemplo que alguém pôde ter. Não
tenho muitas lembranças dela. Era muito nova, eu creio. Uma de minhas poucas recordações
é o dia em que tudo aconteceu.
Era
um sábado ensolarado, e ela havia chegado ansiosa do trabalho. Íamos ao clube. A
gente não tinha dinheiro e a vida não era fácil, mas com o pouco que tínhamos
nunca passamos necessidade. Ela jamais teria deixado. Trabalharia dia e noite
se fosse preciso. Lembro que ela mandou que eu vestisse o maiô azul de listras
laterais verdes que tia Beta havia me dado de natal. O mesmo que eu vestia na única foto que tenho daquela época. Tiramos
antes de sair, com a velha máquina de filme. Ela estava linda, radiante. Finalmente
tinha conseguido juntar dinheiro para pagar nossas entradas no clube da zona sul.
Era um lugar de elite, pessoas como nós não o frequentavam. Tinha três piscinas
enormes e um tobogã que quase levava a gente na porta do céu, como ela
costumava dizer. Ela adorava praias, piscinas e tudo o mais que a fizesse se
sentir livre, em suas próprias palavras: flutuando alegre, como se estivesse
nos braços de Deus. E foi exatamente naquele dia que minha mãe me deixou para
se aconchegar nos braços d'Ele.
Fomos
olhadas com certa desconfiança pelo porteiro, mas como pagamos devidamente as
entradas, ele nos deixou entrar. O semblante dela era de alguém que estava realizando
o maior sonho da sua vida. Acho que não me lembro de tê-la visto tão feliz
assim em outra ocasião.
Brincávamos
juntas na piscina. Ela parecia mais criança que eu. Notei que as pessoas nos
olhavam receosas e perguntei a ela o porquê. Nunca vou esquecer aquela
resposta, que logo fez meu inocente coração voltar à distração, mesmo sem
entender muito bem o que ela quis dizer. ”Não liga, minha filha, nosso dinheiro
vale tanto quanto o de qualquer outro aqui.” Na última vez que eu pude olhar em
seus olhos, vi a expressão assustada, por causa da gritaria que começou. Três
homens, bem vestidos, haviam entrado ordenando que todos se deitassem no chão. Na
hora que ela percebeu o que estava acontecendo, segurou forte o meu braço e
fomos apressadamente para a saída. Eles iam em direção ao escritório que ficava
nos fundo do clube, à esquerda. Quase cruzávamos o portão, quando um deles nos
viu e gritou para o outro que tinha gente fugindo. Esse outro mandou ele
atirar, mas ele hesitou. O outro gritou de novo, mais agressivamente. Minha mãe
virou-se num ato de reflexo, e o tiro acertou-a em cheio no peito. Ali, com
minha mãe sangrando no chão, escorreu também a metade de mim que nunca mais
voltaria a existir. Foi o pior momento da minha, até então, breve vida, e continuará
sendo, ainda que eu viva mil anos.
Cresci
e me tornei adulta, sem que ela pudesse ver e me abraçar a cada lágrima que eu
chorei ou a cada sorriso que dei. Sei que era isso que ela faria se estivesse
aqui. Minha mãe, sempre tão doce. Honesta, batalhadora. Tiraram dos meus braços, ainda tão jovem, a
única pessoa que afastava todos os meus medos apenas com sua presença.
Dezoito
anos depois, hoje ela ainda faz falta aqui, mas a dor que no início dilacerava
cada pedaço de mim, deu lugar à saudade de tê-la comigo e de todos os momentos
que não pudemos viver juntas.
Mesmo
tendo passado tanto tempo, até este exato segundo não consigo entender como uma
pessoa tem a coragem e a covardia de privar outra pessoa de viver ao lado de
alguém que tanto ama. É um corpo que se vai e vários corações que ficam,
lutando para manter o ritmo das suas batidas. Éramos pobres e morávamos num
bairro de classe média baixa, mas foi ali, num clube de classe alta, que nossas
vidas foram, impiedosamente, marcadas para sempre.
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